A subjetividade do jornalista na notícia

“Penso – não sei por que – que é este meu livro que me está fazendo mal... E quem sabe se excitar recordações de sofrimentos, avivar as imagens de que nasceram não é fazer com que, obscura e confusamente, me venham as sensações dolorosas já semimortas?”.

     Em uma escrita confessional que se alterna entre registros de fatos e digressões psicológicas, Lima Barreto dá voz a Isaías, um jovem culto, cheio de sonhos de glória e reconhecimento intelectual. Publicado em 1909, Recordações do escrivão Isaías Caminha é a reconstrução do próprio eu do narrador, atravessado pelas doces lembranças da adolescência e pelas amargas realidades da vida adulta. No romance, o eu-narrador Isaías - jornalista tal como Lima Barreto, retrata os bastidores do Globo, jornal onde sofreria altos e baixos, entre o eu do desejo das fantasias de grandeza intelectual e prestígio social e o eu do cotidiano, às minguas e à beira da humilhação. Essa construção do eu, aliás, também ganha corpo no Diário Íntimo do autor, quando Lima assinala suas impressões de leitura de O Bovarismo (1892), do filósofo francês Jules Gaultier e traça uma identificação entre sua própria personalidade e o bovarismo da Emma de Flaubert. “A pessoa humana”, descreve ele, está estruturada pela “imagem que, sob o império do meio, circunstâncias exteriores, educação, sujeição, a pessoa forma de si mesma” e, do outro lado, estaria o “ser real, ideal, tendências hereditárias etc”. É provável que Lima Barreto não tenha lido os ensaios de metapsicologia de Freud e tampouco tenha ascendido sobre a teoria freudiana do sistema psíquico. No entanto, embora o relato de suas vivências traumáticas de infância e esse anseio de tornar-se um outro sejam elementos constitutivos do eu, cabe perguntar em que medida essa escrita de si revela um recobrimento ideativo do real, cuja trama principal é encoberta por um discurso manifesto e consciente.    

      Nos anos em que Lima Barreto foi jornalista, uma linha tênue e difusa separava esta prática profissional da literatura. As dores, os ditos e os traços que estruturam o eu de Isaías e de Lima ainda cabiam no jornal. E eram publicados não apenas no formato de crônicas, mas também na reportagem, gênero este, aliás, que Lima Barreto foi colaborador contumaz. Era como se o eu da notícia e o seu objeto de investigação se fundissem no tabloide. Hoje, conforme prevê o artigo 4 do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, “o compromisso fundamental do jornalista é com a verdade no relato dos fatos (...)”. Essa verdade é associada à objetividade e tida como um dos valores fundamentais da profissão. Ou seja: ou há objetividade ou há doutrinação ideológica. Com isso, espera-se que o jornalista renuncie a sua subjetividade na construção da notícia, uma vez que se pretende que o relato do fato seja neutro, imparcial e objetivo. Mas, afinal, qual o lugar dessa subjetividade enunciada? 

      Na notícia, via de regra, o eu não se vê. O jornalista assina o texto, mas não pode assumir o dito e nem subjetivar o sentido.  Mas, poderia a realidade psíquica do sujeito assumir uma ênfase exagerada em comparação à realidade material? Lembro aqui de um amigo repórter de um jornal paulistano que perdeu seu avô em um riacho quando tinha quatro anos. Segundo ele, a memória da tragédia lhe aparece representada à lembrança de um carrinho de flexão de ferro que ele atirou na água na tentativa de recuperar o avô. Volta e meia, quando confrontado com a cobertura de um fato jornalístico similar, ele revisita suas lembranças e costuma detalhar aquele dia a partir do que guardara do relato de sua mãe. Certa vez, contou ele, ao cobrir um acidente de carro que vitimou a mãe de uma criança, dirigiu a cena da tragédia. Em um impulso, pegou uma boneca que estava no banco de trás do carro e a colocou fora, ao lado da porta, próximo aos estilhaços de vidro. Do ponto de vista jornalístico, trata-se de uma clara interferência do sujeito na constituição do acontecimento, uma manipulação no fluxo objetivo da realidade. Agora, do ponto de vista da teoria psicanalítica, é possível que esse impulso que aparece como intencional carregue em si um significante oculto e represente uma manifestação do inconsciente?

Por fim, outro elemento para reflexão é sobre como a subjetividade do jornalista se manifesta e se presentifica na escolha das fontes e no modo como o repórter percebe e relata o fato jornalístico. São escolhas que podem estar para além das ideologias e da formação cultural, histórica e social do jornalista. Quando um jornalista escolhe a fonte para uma entrevista ou elege aquele comentário que dará as aspas de sua matéria, essa escolha, ainda que pareça deliberada, pode revelar um ato psíquico inconsciente. É precisamente esse lugar que a subjetividade prevista na deontologia dos jornalistas não alcança. Uma subjetividade indomável cujos atos psíquicos, como assinala Freud, “pressupõem, para sua explicação, outros atos, de que a consciência não dá testemunho”. Caberia então indagar, o que esses fenômenos lacunares podem revelar da subjetividade do sujeito que desempenha a função de jornalista. 





Comentários

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    1. Ah, que bom saber, Upi! Só vi agora teu comentário. Acho que vale um café pra charlar un rato más. :)

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