O desejo da mãe de Louis

 

Louis Althusser carregava no nome o anúncio do desejo de sua mãe. “Lui, esse pronome de terceira pessoa que, soando como a chamada a um terceiro anônimo, me despojava de toda personalidade própria, e fazia alusão a esse homem às minhas costas: Louis, meu tio, que minha mãe amava, e não eu”. Batizado com o nome de um morto, a quem sua mãe estava prometida e iria casar, Althusser revela que “talvez esse nome dissesse um pouco demais, em meu lugar: oui, e eu me revoltava contra esse “sim” que era o “sim” ao desejo de minha mãe, não ao meu.


Em “O futuro dura muito tempo” (1985), o filósofo escreve de seus afetos e de seus fantasmas, associa recordações e tenta dar um arranjo para o crime que cometeu. Cinco anos antes da publicação, Althusser havia estrangulado sua mulher Hèléne enquanto massageava a frente de seu pescoço. Diagnosticado com uma crise de melancolia aguda e tido como impronunciado, o filósofo foi legalmente impossibilitado de dizer do seu ato. Condenado a um não há lugar, a resposta de Althusser se dá através desse manuscrito de 323 laudas de formato ofício, uma escrita-testemunho onde o filósofo desafia a impronúncia e tenta dar tratamento ao sem-sentido do ato criminoso. 

No escrito, Althusser adverte que não faz ali nem em outro lugar, “autoanálise”. Esse assunto, segundo o filósofo, deixa para “todos os espertinhos de uma ‘teoria analítica’ adequada às suas obsessões e a seus fantasmas particulares”. Ainda assim, sem divã e às duras penas, Althusser tenta acalmar uma inquietação e escreve na tentativa de não desaparecer em uma segunda morte simbólica. 


É então ali que passa a limpo os tratamentos que seguiu, os medicamentos que teve de tomar e tenta amarrar explicações e suas interpretações. Nos primeiros capítulos, dedica-se a rememorar lembranças de sua infância e associá-las com outros eventos inscritos na “categoria repetitiva de outros choques afetivos de mesmo tom e violência”. Uma das recordações mais constitutivas está associada à imagem de sua mãe, “uma mãe-mártir e sangrando como uma chaga”. Colhendo os relatos de sua tia e de sua avó, essa mãe é por ele retratada como transtornada, roubada, violentada e dilacerada em seu corpo. Para ele, essa mãe sofredora, destinada a uma dor ostensiva e repleta de censuras, precisava ser salva de seu martírio e de seu marido. Althusser era o orgulho dessa mãe sufocante, cujas fobias e atos invasivos o deixavam mortificado. Uma mãe que o amava como um morto. 


O pai, por sua vez, é retratado como um homem poderoso profundamente sensual que “amava o vinho e as carnes sangrentas com a mesma força que amava as mulheres”. Para ele, o pai simbolizava um homem autoritário e de personalidade, que dizia tudo em público, mas que para Althusser e para a irmã não dizia nada, e que, em vez de liberá-lo em seu desejo, o aterrorizava com seu silêncio. “Durante a vida inteira ele se calou sobre si mesmo, e eu nunca me atrevi a interrogá-lo, a fazê-lo falar de si. Aliás, teria ele me respondido? Devo confessar que durante muito tempo odiei meu pai por ele fazer minha mãe sofrer aquilo que eu vivia como sendo um martírio para ela e, portanto, também para mim”. Embora esse pai, às vezes autoritário e associado a um imperador romano e em outras tido como cúmplice, tenha se presentificado, algo da ordem funcional não se inscreve. “Tive eu realmente um pai?”, questiona-se Althusser. “Sem dúvida, eu tinha seu sobrenome e ele estava ali. Mas, em outro sentido: não”. 


Entre uma mãe-mártir e um pai desaparecido, Althusser encontraria na figura de Hélène um duplo estabilizador que reconstrói o casal parental. Ao menos assim, a partir das retenções de afetos, das fantasias e das alucinações, ele a apresenta. Uma mulher odiada pela mãe, porque esta desejava um menino; uma criança-mártir, resistente a sucumbir aos abusos de uma mãe que não a amava. Uma mulher dez anos mais velha, com quem ele perderia sua virgindade e que desde o primeiro momento o faria sentir-se incumbido de uma missão: “Desde aquele momento (quando a conheceu, em dezembro de 1946) fui assaltado por um desejo e uma oblação exaltantes: salvá-la, ajudá-la a viver”.

Tal como os personagens da história de Althusser são identificados e remarcados em sua autobiografia, o desejo materno é representado como insaciável e isento da relativização do significante do Nome-do-Pai. Althusser e sua mãe aparecem marcados por ligação real e sem mediadores. Quando Lacan situa no seminário 5, “As formações do inconsciente” (1957-1958), que “não há sujeito se não houver um significante que o funde”, ele mostra como a criança se esboça como assujeito, uma vez que a princípio está assujeitada ao capricho daquele de quem depende. “O essencial é que a mãe funde o pai como mediador daquilo que está para além da lei dela e de seu capricho, ou seja, pura e simplesmente a lei como tal”. Trata-se aí, continua Lacan, da mãe com a palavra do pai – com o pai na medida em que o que ele diz não é, de modo algum, igual a zero. Dito isso, o significante aparece como um furo no discurso da mãe e faz com que o destino da criança, esta que aparece como incógnita (x), seja definido a partir da articulação entre o significante do Nome-do-Pai e o desejo materno. Uma vez que o desejo da mãe não é prévio ao significante, mas articulado a ele, podemos pensar que o apetite infinito e voraz dessa mãe, cujo objeto é fixo e predeterminado, corresponderia a um gozo e não a um desejo. Assim, grosso modo, na falta da mediação do significante Nome-do-Pai para barrar esse desejo insaciável da mãe, a criança pode responder à incógnita da metáfora paterna com sua própria destruição, uma vez que ela não existe simbolicamente.


Batizado com o significante da morte, Althusser se sentia incapaz de amar e atribuía o feito ao “amor totalmente impessoal” de sua mãe, posto que este não era dirigido a ele, mas ao Louis morto atrás dele. “Queria a todo custo me destruir, pois, desde sempre, eu não existia”. Althusser afirma que se destruir, depois de ter destruído tudo e todos, seria a melhor prova de não existir. Nesse sentido, o assassinato de Hélène pode ser lido como um lampejo de sua autodestruição. 

No manuscrito de 1985, o filósofo elabora o crime como um suicídio por pessoa interposta, o que corresponderia a um suicídio altruísta. Ele matou com o consentimento de Hélène. Althusser estaria, assim, atendendo ao desejo de Hélène, a quem reservaria a função da nova mãe-mártir, e realizando sua fantasia suicida. Por outro lado, entre as leituras possíveis para o assassinato, a passagem ao ato de Louis pode ser lida como função de barrar o desejo materno para dar lugar a uma existência própria. Quiçá uma aposta ao lugar de sujeito. 

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