eu queria ser mulher *
[Quando a poesia descreve a histeria
ou sobre a sina histérica do desejo insatisfeito].
Eu
queria ser mulher pra me poder estender
Ao
lado dos meus amigos, nas banquettes dos cafés.
Eu
queria ser mulher para poder estender
Pó
de arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos cafés.
Eu
queria ser mulher pra não ter que pensar na vida
E
conhecer muitos velhos a quem pedisse dinheiro -
Eu
queria ser mulher para passar o dia inteiro
A
falar de modas e a fazer «potins» - muito entretida.
Eu
queria ser mulher para mexer nos meus seios
E
aguçá-los ao espelho, antes de me deitar -
Eu
queria ser mulher pra que me fossem bem estes enleios,
Que
num homem, francamente, não se podem desculpar.
Eu
queria ser mulher para ter muitos amantes
E
enganá-los a todos - mesmo ao predilecto -
Como
eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto,
Com
um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes...
Eu
queria ser mulher para excitar quem me olhasse,
Eu
queria ser mulher pra me poder recusar...
Ah,
que te esquecesses sempre das horas
Polindo
as unhas -
A
impaciente das morbidezas louras
Enquanto
ao espelho te compunhas...
A
da pulseira duvidosa
A
dos anéis de jade e enganos -
A
dissoluta, a perigosa
A
desvirgada aos sete anos...
O
teu passado, sigilo morto,
Tu
própria quasi o olvidaras —
Em
névoa absorto
Tão
espessamente o enredaras.
A
vagas horas, no entretanto,
Certo
sorriso te assomaria
Que
em vez de encanto,
Medo
faria.
E
em teu pescoço
—
Mel e alabastro —
Sombrio
punhal deixara rasto
Num
traço grosso.
A
sonhadora arrependida
De
que passados malefícios -
A
mentirosa, a embebida
Em
mil feitiços
*Mário de Sá-Carneiro
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