“Os leitores têm que saber onde estou e de onde falo”

Mario Wainfeld é um tipo macanudo. Assim foi descrito por meia dúzia de jornalistas e militantes quando contei que o encontraria. Conhecido como um dos colunistas de política mais importantes da Argentina, Mario Wainfeld tem uma trajetória singular. Com formação jurídica, foi advogado por 25 anos e cursou dois anos de pós-graduação em Ciência Política na Universidad del Salvador, mas nunca escreveu a tese. Foi professor de direito político, privado e constitucional e também deu aulas de introdução a ciências sociais e de jornalismo. Foi militante político, mas segundo ele mesmo reconhece, “sou melhor escrevendo que conseguindo filiados”. 
Há 20 anos, Wainfeld escreve semanalmente para o Página|12, jornal progressista especialmente dedicado às causas de direitos humanos, e aos sábados conduz as três horas do programa Gente de a pie na Rádio Nacional. Em média, publica dois textos de análise política aos domingos e escreve uma nota por semana. Nas semanas próximas às eleições, escreve de domingo ao domingo. Aos 68 anos, produz uma média de 130 notas por ano, a maioria de política, mas também é incentivado a escrever na editoria de artes e cultura e sobre futebol nos dias de partida.
Atualmente, lê os clássicos das ciências sociais e da história do pensamento político e recorre à ficção quando percebe que está muito bruto. “Quando escreves muito, por ofício, perdes um pouco a liberdade”. Então, lê obras de jornalistas contemporâneos, como Jorge Fernández Díaz, e permanentemente revisita as obras de Borges, Rodolfo Walsh, Philiph Roth, Calvino, Cortázar, Carpentier, este último, confessa, “um pouco atrasado”. “São livros que me encantam e alguns contos poderia citar de memória, ou quase de memória”.
No final do ano passado, Wainfeld lançou o livro Kirchner, el tipo que supo, agora em sua sexta edição pela Siglo Veintiuno. Ele, que já publicou artigos e textos em compilados com outros autores, tem na biografia de Néstor Kirchner seu primeiro livro.
Diferente do que alguns poderiam imaginar - inclusive eu, Néstor Kirchner não lidera a lista de Wainfeld dos políticos macanudos, modo como os argentinos caracterizam uma pessoa estupenda, magnífica. Logo no começo da conversa, Mario Wainfeld tratou de esclarecer: “Em geral, é difícil chegar a um tipo macanudo. Há gente agradável e de bom trato. Eu acho que ter muito poder faz disso quase algo incompatível. Mas se eu tivesse que eleger um tipo, Marco Aurélio Garcia me parece imbatível nesse sentido. Tem ânsia de discutir, ânsia de persuadir, mas não chega dizendo ‘eu sei tudo’. E ele sabe tudo”. Marco Aurélio Garcia, fundador do PT, ex-assessor de Lula e Dilma e um dos pilares da política externa durante os governos petistas, o macanudo emblemático de Wainfeld, morreria três dias depois da entrevista.
Em duas horas de conversa no Lucio, tradicional café de Palermo a poucas quadras de sua casa, o colunista de política do Página|12 falou de jornalismo e da construção da notícia, do kirchnerismo e militância, reiterou suas preferências e posições políticas e comentou a situação política na América Latina.


“Há um refluxo de uma onda conservadora no mundo”
É preciso evitar uma generalização muito drástica da situação latino-americana, sem deixar de advertir que há questões que mudaram. Minha impressão, por razões que teria que desenvolver, mas que muito rapidamente somaria dois ou três fatores. Um é o grande ciclo de matéria prima que encontra não um fim, mas uma estafa. O outro ponto, este mais sofisticado, é que há um momento de crescimento econômico e de ascensão de setores sociais que é eficaz e exitoso em muitos sentidos para os pobres, indigentes, setores médios. Entendo que a partir daí e em paralelo com a questão das commodities, mas com uma lógica própria, é que surge outra estrutura social e outras demandas mais sofisticadas e mais exigentes com setores ascendentes que pensam diferentemente. A outra questão é o próprio esgotamento do ciclo político, da novidade, da capacidade de inovar de diferentes forças políticas. Há um refluxo de uma onda conservadora no mundo, estruturado a partir de um conjunto de fatores próprios e também endógenos.

Jornalistas autodidatas, mas muito bem formados
Não conheço a formação no Brasil. Leio os jornais, mas em assuntos mais direcionados à conjuntura. Não sei distinguir a realidade da formação de jornalistas dos dois países. Acredito que na Argentina há uma questão diversa. Muito dos jornalistas que trabalham tem uma tendência, e talvez isso seja geracional, de ser autodidatas em sua formação, mas muito bem formados. Não têm uma formação específica, mas sabem mais de direito que os advogados e sabem de economia como muitos economistas. Da nova geração, por exemplo, me parece que varia. No Página|12, a imensa maioria dos jornalistas que ali trabalham têm formação universitária e não todos em jornalismo. Muitos têm formação em outra carreira.
Fui chefe da editoria de política do Página|12 por sete anos, de 1997 a 2004, nessa época havia um acordo de estágio com a Universidade Buenos Aires (UBA), que deve continuar existindo, e também com o Colégio Nacional de Buenos Aires, que é secundário. Dali saiam alunos qualificados que passaram a trabalhar com jornalismo, alguns viraram jornalistas destacados. Eu, particularmente, preferia que não estudassem exatamente comunicação social.  Claro, não era um fator excludente, mas eu aconselhava aos alunos que se envolvessem em carreiras mais amplas, sociologia, ciência política, história.
Hoje, no Página|12, muitos dos jornalistas têm formação específica na área em que atuam. Em economia, quase todos os jornalistas são economistas graduados, em política também muitos têm título em ciência social. Acho positivo que não haja nenhuma regra, nenhuma norma, em relação a isso. É importante que o jornalista tenha um grau de formação, mas também depende muito do tipo de cobertura e do tipo de trabalho que vai fazer.

“Lidar com a objetividade é muito difícil”
Eu venho da participação política da militância. Militei no peronismo por muitos anos e penso coisas muito parecidas, apesar das variações que traz o tempo e das mudanças de época. Tenho um pensamento que é de matriz nacional popular com formação peronista. Fui peronista, renunciei à minha filiação peronista algumas vezes e com mais precisão quando Menem decretou o indulto aos militares, no fim dos anos 1990. Então me desvinculei do peronismo e renunciei ao cargo de funcionário que tinha (no partido). Tenho ligação com o peronismo, um compromisso muito forte com os direitos humanos, e isso me aproximou do kirchnerismo, em parte porque o kirchnerismo adotou como política de Estado aquilo que eram reinvindicações da sociedade civil e de posições minoritárias. Então, majoritariamente o acompanhei. Se fui ou se sou kirchnerista? Cada um pode definir como queira. Eu diria que, basicamente, sim. Ainda que tenha estado mais de acordo com algumas políticas do que com outras, mais em alguns momentos do que em outros, e sobre isso escrevo permanentemente. Minha impressão é que lidar com a objetividade é muito difícil. Na minha opinião, o primeiro que deve fazer um colunista político é dizer o que pensa para o público saiba aonde está e partir daí possa discernir. Ou seja, eu penso isso. Os leitores têm que saber onde estou e de onde falo.

A construção da notícia
Passado o conflito com o kirchnerismo, o Clarín baixou muito sua qualidade jornalística e tem mudado, inclusive. Eu não sei o impacto que tem isso nas vendas, mas o Clarín tem perdido, como meio de comunicação, uma capacidade que tinha, e que quando eu era editor (no Página|12) era uma característica muito provocativa, desafiante e preocupante, de estar sintonizado com as pessoas comuns da Argentina. Clarín apoiou a ditadura, defendeu governos e fez coisas espantosas, mas era um companheiro de existência da classe média argentina e tratava de não irritar o leitor. Hoje, é tamanho o nível de conflito, que se transformou em um jornal que quer indignar seus leitores, obviamente não contra o governo atual, mas sim contra o anterior. Isso o transforma em um jornal muito chocante e pobre de informação, inclusive. Segue tendo alguns bons jornalistas, acredito que os correspondentes estrangeiros se defendam melhor, talvez porque tenham mais tranquilidade.
O La Nación acho que é diferente. Algumas das notícias têm uma boa apuração - e na editoria de política isso também ocorre, o jornal tem uma parte informativa forte, mas, dito entre aspas, o “La Nación nunca se equivoca editorialmente”. O La Nación tem uma linha editorial há muitos anos e, mesmo quando erra, “nunca se equivoca”.
A questão é que na Argentina de hoje e muito devido à construção do relato jornalístico, se você arma uma discussão sobre um esporte secundário como o polo, por exemplo, em seguida se transforma em uma discussão sobre kirchnerismo e anti kirchnerismo. Então, tudo se resume a isso em uma sociedade muito complexa. Isso é assombroso.

Relação com fontes e com leitores
A construção da notícia supõe conversas por telefone ou pessoalmente e também em off. Eu particularmente gosto muito de fazer pessoalmente, prefiro ver o protagonista e manter conversas com especialistas em questões trabalhistas e previdenciárias, a depender do que vou escrever. 
Desde que comecei a trabalhar na rádio percebi que o trabalho do jornalismo impresso está distanciado do público. Então, ao pé de minhas notas, coloco meu endereço de e-mail e faço algo não muito comum que é responder a todos. Em geral, os leitores fazem comentários ou críticas por não concordarem com determinada opinião ou ainda quando gostariam de aprofundar o tema. A partir daí comecei também a perceber uma espécie de rede caótica, mas também muito interessante, de pessoas que trabalham em realidades sociais distintas de um mundo que conheço pouco. Tenho uma casa, um carro e um trabalho. Isso me coloca em uma situação privilegiada da classe média argentina. Sou um dos 20% que desfrutam dessa condição. Não gosto de estar aí, mas estou. Então, às vezes me falta informação e percebo que conheço mais ministros de saúde que médicos de hospitais. Comecei a pensar nisto e aproveitar sobretudo o público do Página|12, que é de leitores interessados e capacitados – muitos são trabalhadores sociais e docentes –, e passei a questioná-los sobre o que acontece nesses ambientes, que realidade veem. E tenho uma relação com uma média de 30 pessoas com as quais tenho um contato frequente e que me abrem possibilidade para uma perspectiva que não tenho. Essas pessoas, além de fontes de informação, são parte de uma boa amostra existencial.

“Não tenho nem boa e nem má relação com o atual governo”
Os governos argentinos, com alguns matizes e diferenças, têm seu veículo e um elenco de jornalistas com quem conversam mais e menos. É mais fácil ter fontes no Congresso, deputados e senadores são mais abertos a conversar e falam de outra posição. Eu poderia fazer uma escala, que não é linear, de quais governos tive melhores ou piores fontes. Não é tão óbvia como alguns poderiam pensar. O kirchnerismo tampouco foi uniforme nisso. Eu tive acesso a fontes fundamentais e a melhores informações durante o primeiro governo de Kirchner do que no segundo de Cristina, por exemplo. Em parte, porque me parece que o governo de Néstor Kirchner falava mais com os jornalistas. Cristina atendia menos à imprensa e isso era uma característica que sempre teve.
Os peronistas são mais dados a falar que os radicais (políticos da UCR, Unión Cívica Radical). Os macristas são astutos para lidar com isso. Ou seja, abrem um pouco a conversa, mas não contam nada relevante ou reservam o relevante para os outros. Essa é a lógica, nunca me ofendo por isso ou pelo ministro tal ou o presidente que atende ou não atende. O presidente Macri não atende o Página|12 há dez anos, desde que foi prefeito de Buenos Aires. O macrismo tem um apoio midiático muito importante dos meios mais poderosos, que são os grandes atores econômicos. O Clarín, por exemplo, é uma das dez empresas maiores na Argentina, não é apenas um jornal, é uma empresa multimídia. Além disso, o macrismo é mais severo com os meios opositores e, em termos, é mais sofisticado que o kirchnerismo, tenta dirigir a pauta jornalística, os persegue, às vezes discute a gritos e às vezes não os deixa viver.

A Argentina macrista
Na Argentina havia um consenso que o dirigente político devia ter uma espécie de pertencimento social, representar certas coisas. Eram pessoas de classe média, ascendentes, e não pessoas ricas como Macri. Na minha opinião, o imaginário social se fez muito mais flexível a certos ideais e características da direita que antes rechaçavam “naturalmente, automaticamente, dinamicamente”. Sinto que há uma espécie de fadiga. Como pode ocorrer que as classes médias ou classes médias baixas, formadas basicamente por trabalhadores de fábrica e vítimas da injustiça social, migrem politicamente para o macrismo? Eu não sei.


Entrevista publicada no Portal Desacato, da Cooperativa Comunicacional Sul. No Desacato, pode ser lida aqui.


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