A escrita de si na psicose

     Na narrativa de Althusser em O futuro dura muito tempo, de 1985, a escrita de si dá voz àquilo que é impossível de ser todo dito. Na falta de direito à palavra depois de estrangular sua mulher Hélène, Althusser tenta na escrita-testemunho dar um tratamento ao real do crime que cometeu. E assim, apreendendo a cena traumática da morte, o filósofo dá palavra à passagem ao ato. Os olhos fixos, a pontinha de língua que repousa entre seus dentes e seus lábios, as pernas largadas sobre o carpete do chão, a cortina vermelha. “Estrangulei Hélène!”. Ainda que estivesse ali, debruçado sobre o corpo de Hélène e massageando a frente de seu pescoço, Althusser parece ter saído de cena e estar fora do discurso.

 
     Althusser foi legalmente impossibilitado de dizer do seu ato. Diagnosticado com uma crise de melancolia aguda e tido como impronunciado, o filósofo busca o recurso simbólico da palavra para dar tratamento ao sem-sentido do ato criminoso. Em seu escrito, Althusser mostra um saber bem construído sobre sua própria constituição fantasmática e diz reconhecer em si a ambivalência da qual Freud “tão bem falou”. Diante da obsessão alternada entre a “onipotência irreal da depressão e a onipotência megalomaníaca da mania”, ele revela o medo de ser totalmente impotente e seu desejo de ser todo-poderoso, o desejo de dispor daquilo que lhe faltava para ser um homem pleno e livre e daquilo que tinha horror de que lhe faltasse. Essa ambivalência, aliás, também atravessa o escrito de Althusser. Um escrito que dá margem à fantasia, à alucinação e ao testemunho de um assassino e também um escrito de como um intelectual e filósofo de profissão habita sua loucura. 
     Batizado com o nome de um morto, seu tio Louis, a quem sua mãe estava prometida e iria casar, Louis Althusser afirma que “talvez esse nome dissesse um pouco demais, em meu lugar: oui , e eu me revoltava contra esse “sim” que era o “sim” ao desejo de minha mãe, não ao meu. E, sobretudo, ele dizia: lui, esse pronome de terceira pessoa que, soando como a chamada a um terceiro anônimo, me despojava de toda personalidade própria, e fazia alusão a esse homem às minhas costas: Louis, meu tio, que minha mãe amava, e não eu”. Para ele, esse reflexo do outro de um morto não se tratava mais de um fantasma, “mas da própria realidade de minha vida. É assim que, para cada um, um fantasma se torna vida”. 
     
     Em outra passagem, Althusser lembra que aos treze anos, experimentando a satisfação e os prazeres que vêm de seu sexo, sua mãe o levou até o seu quarto, levantou os lençóis de sua cama e apontando com o dedo, sem tocá-las, mostrou as grandes manchas opacas e endurecidas em seus lençóis. A mãe, por sua vez, para cumprir o que julgava ser seu dever, declara: “Agora, meu filho, você é um homem”. “Propriamente um estupro e uma castração”, assim interpretaria Althusser. Em seu livro Ler o Capital, o filósofo empresta da psicanálise um procedimento que ele denomina leitura sintomal, método que teria a capacidade de identificar e recolher aquilo que não é visível, de reconhecer a lacuna, a ausência e o silêncio do discurso do outro. No texto confessional de Althusser há um buraco da ordem do impossível de se dizer e uma “interminável pergunta” a ser pronunciada: “mas como é possível que eu tenha matado Hélène?”. Ou, adiante, “o que afinal aconteceu naquele domingo 16 de novembro entre mim e Hélène, para se chegar a esse assassinato monstruoso?” . 

     Impedido de falar pelo Outro jurídico e impedido de falar pelo Real, Althusser tenta remover a “pedra sepulcral da impronúncia, do silêncio e da morte pública” a que foi obrigado a sobreviver e aprender a viver. À sua maneira e às duras penas, Althusser desafia a impronúncia e tenta sobreviver às custas de uma amarração da leitura que ele fez do ato e da narrativa interpretada por amigos, médicos e também daquela contada pela imprensa. “Eu dava voltas e voltas, mas sem jamais me sentir culpado, em torno da razão profunda de meu crime. Lembro-me (eu já a havia formulado diante dele [analista]) de ter avançado uma hipótese: o assassinato de Hélène teria sido “um suicídio por pessoa interposta” , o equivalente a um suicídio altruísta. Essa é a forma pela qual Althusser dá conta de elaborar o assassinato. Ele matou com o consentimento de Hélène. Diante de uma vontade simultânea de perder e destruir tudo - Hélène, seus livros, a Escola, seu analista e a ele próprio -, Althusser vivia o luto por si mesmo desde sempre, em um ímpeto de autodestruição tal como fantasiava em seus projetos de suicida. “Queria a todo custo me destruir, pois, desde sempre, eu não existia”. É pela escrita-testemunho que Althusser coloca em palavras a sua própria lacuna e tenta retomar algo de si, um ato de ser, como teria interpretado um amigo. Desse modo, seu escrito serviria como uma prova de existir, uma invenção de si que visa um laço com o outro.

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