Para além do princípio do prazer com Bataille

                 
     A forma do olho era a do ovo. Mas também poderia se deslocar para a urina e lágrimas, entre as pálpebras e as pernas, no grito e também nos colhões arrancados de um touro. Em História do olho, de Georges Bataille, os objetos da pulsão aparecem em constante movimento e os personagens vivem em busca de um gozo sublime e obsceno, desfrutando do prazer de ultrapassar os limites, em uma espécie de mal-estar que os obriga a desafiá-lo. Publicada em 1928 sob o pseudônimo de Lord Auch, a primeira novela de Bataille foi escrita graças à intervenção de seu psicanalista, que o estimulou a colocar no papel suas fantasias sexuais para “livrar-se de suas obsessões” ou, como ele próprio revela, para “livrar-me de meu nome”. O texto começa com o narrador olhando o olho do cu de Simone para então ruborizado assistir àquela bunda mergulhar em um prato de leite para gato. 
 – Você pode fazer xixi para cima até o meu cu? 

     A novela então discorre entre metáforas e deslizamentos metonímicos, entre desordem e devassidão, em meio a tempestades, brincadeiras sexuais e inclinações necrófilas, gritos de excitação e de horror. A História do Olho parece nos impor a presença do pequeno perverso polimorfo com sua sexualidade fragmentada em pulsões parciais deslizando entre objetos e objetivo, tal como assinala Freud nos seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Em um ato de completa destruição da beatitude humana, um padre é amordaçado e enforcado e tem seu olho arrancado. Os amigos então assistem aquele olho santo escorregar na rachadura da bunda de Simone. Em um piscar de olhos - aos olhos do leitor, os personagens da novela batailliana estão entre a vida e a morte, em busca de um gozo absoluto. Assim, os objetos pulsionais são introjetados um a um e o princípio do prazer reina soberanamente. 

     Em 1920, no texto Além do princípio do prazer, Freud começa a supor que o masoquismo poderia ser primário em relação ao sadismo , para então, em O problema econômico do masoquismo, de 1924, assegurar a existência de um masoquismo primário. É também nesse texto de 1920, a partir da análise da natureza repetitiva do sintoma neurótico em sua articulação com o trauma, que Freud restabelece o dualismo pulsional que passou a ser regulado pela oposição entre vida e morte. É ali, então, que a pulsão de morte se revela atrelada à produção do masoquismo originário. Em O Erotismo, de 1957, Bataille dá testemunho que, aos seus olhos, o erotismo é o desequilíbrio em que o próprio ser se coloca em questão, conscientemente. “Em certo sentido, o ser se perde objetivamente, mas então o sujeito se identifica com o objeto que se perde. Se for preciso, posso dizer, no erotismo: EU me perco”. Aqui, o erotismo parece se aproximar da fantasia neurótica onde o Eu goza masoquistamente e em que as formas destrutivas de sua perversidade e licença polimórficas retornam contra o Eu. Assim, esse erotismo sem volteios, que insurge como um arrebatamento, dilacerando e provocando a perda do sujeito estaria ligado à pulsão de morte. Adiante, ainda em O Erotismo, o escritor francês atesta que “é preciso muita força para perceber a ligação da promessa de vida, que é o sentido do erotismo, com o aspecto luxuoso da morte”. Neste fragmento, o erotismo parece esbarrar nas tendências destrutivas da pulsão de morte e se aproximar do Eros freudiano. 

     No texto O Eu e o Id, de 1923, Freud aponta que há um resultado da ação simultânea e mutuamente oposta de Eros e da pulsão de morte. De algum modo, vida e morte em Bataille também estão tensionados, são díspares e coexistem. Na novela do olho, opera-se um vínculo entre a pulsão de destruição e a sexualidade. Tomados pela voracidade do corpo e pelo apetite de ver, Bataille conduz os personagens ao excesso da satisfação pulsional, numa aprovação da vida até na morte. Posto isso, uma questão que fica é em que circunstância o erotismo se aproxima e se distancia do masoquismo e como é estabelecida essa relação. 

     Em um plano para uma continuação da História, Bataille escreve que após quinze anos de excessos cada vez mais graves, Simone foi parar num campo de tortura. Ela é espancada até a morte. “Não se trata, de forma alguma, de um gozo erótico, é muito mais que isso. Mas sem saída. Também não se trata de masoquismo (...)”. Bataille dá indícios que o gozo erótico foi extrapolado por Simone, instante em que ela se cala e se faz indiferente à vida. É importante retomar Freud em O problema econômico do masoquismo quando diz que “(...) a periculosidade (do masoquismo moral) se deve ao fato de derivar da pulsão de morte, de corresponder àquela sua parcela que escapou de ser voltada para fora como pulsão de destruição. Mas, como por outro lado, ele tem o valor de um componente erótico, a autodestruição da pessoa também não pode se realizar sem uma satisfação libidinal”. A questão que incide, portanto, é se a concretização do erotismo em sua continuidade excessiva somente poderia se realizar no encontro com a própria morte.

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