"9:30, tua carta e o sol voltou"
Aqui jaz um artista / mestre em desastres /
viver / com a intensidade da arte / levou-o ao infarte / deus tenha pena / dos
seus disfarces.
Mestre em
jogos irônicos, improvisos, caprichos e relaxos. O cachorro louco Paulo Leminski
não era fixo em nada. Fez poesia, prosa, romances, contos, traduções,
biografias, canções, ensaios críticos, crônicas e um catatau de outras coisas.
Na obra Paulo Leminski – o bandido que
sabia latim, o biógrafo Toninho Vaz apresenta o poeta como samurai
futurista, pensador, selvagem, agitador intelectual, meio polaco e meio
caboclo, provinciano e universal, e conclui: “ Leminski foi uma inesquecível
tempestade na cena cultural brasileira, antes de morrer aos 44 anos, em 1989,
no auge do sucesso, como um mito”. Críticos de amigos tentaram classificá-lo.
Caipira cabotino, samurai malandro, monástico sujeito, polilíngue paroquiano
cósmico, samurai mestiço. Ele também tentou se autodenominar. Parnasiano-chic,
guerreiro da palavra, caboclo-monge-black-beat-zen, útil operário do signo.
Esse
retrato multifacetado é acentuado, sobretudo, na obra Uma carta uma brasa através, reeditada em 1999 com o título Envie meu Dicionário – cartas e alguma
crítica, que reúne as 68 cartas remetidas ao poeta paulista Régis
Bonvicino. Leminski fez da sua correspondência um diálogo privado, o registro
de um desabafo, um testemunho poético onde o autor “aconselha, admoesta,
comenta, discorda, prega, teoriza, doutrina, corrige poema e outros escritos”,
como discorreu Walnice Galvão sobre o epistolário de Mário de Andrade.
Nos
cinco anos da troca epistolar, a figura opressiva foi a da censura. Falar em
música popular brasileira e televisão representava não somente a modernização,
mas ecoava resistência cultural. Nas cartas-poemas, Leminski dá voz àquilo que
não era de direito mencionar, faz alusões à ditadura militar dos anos 1970, ao
movimento da contracultura, às inquietações político-estéticas de sua geração e
imprime sua identidade poética, uma busca da “liberdade da minha linguagem”.
Em
1976, às três da madrugada de uma noite chuvosa em Curitiba, o poeta escreve as
primeiras páginas endereçadas ao amigo paulista Régis Bonvicino. “(...) depois
do Catatau? / não quero mais escrever LIVROS / não quero fazer carreira literária”.
Nesta missiva, o poeta impõe-se e move-se em contradições, já que Catatau foi sua primeira prosa e, nos anos
seguintes, Leminski teria publicado 18 livros e traduzido oito obras de
escritores estrangeiros. Em julho de 1979, a divergência do poeta seria
apontada por alguém em Curitiba: “- ué, v. não disse que o catatau ia ser teu
último livro? – sim, mas naquela época eu bebia....”. Assim como esta primeira
incoerência, destoada na medida que a publicação poética do autor invalida sua
própria transcrição, outra questão é discutida na correspondência desses
missivistas: a relação de Leminski com os precursores do movimento concretista
(leia-se Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos). Nas cartas, ora
Leminski afirma seguramente que precisa combater alguns interditos que a poesia
concreta instalou, ora faz alusão ao seu período concretista, quando escrevia
para seus patriarcas e ficava preocupado em saber “o que eles iam achar”.
Leminski
conheceu o trio Noigandres na Semana Nacional da Poesia da Vanguarda, em 1963,
por ter afinidade e influência com o repertório do grupo, sobretudo pelos
poemas e traduções dos Cantos, de
Ezra Pound, feitas por Haroldo de Campos. A reconstituição intelectual e a
materialidade da linguagem, com o encontro da voz, som, cor, movimento e
elementos não-verbais, deram a tônica inicial para o concretismo e assinalaram
a ruptura com o padrão tradicional do verso. Na poética leminskiana, o
concretismo contribuiu para “tornar compreensíveis coisas até então
incompreensíveis”, como disse o poeta. “(...) nessa época eu era “concretista”
/ mas eu era uma porção de outras coisas também / e quando deixei que elas
agissem mais forte / fiz o Catatau
(...)”, escreveu em julho de 1977.
Apesar
do envolvimento com os poetas concretos, significativo na primeira carta e em
algumas observações manuscritas, a visão crítica sobre os patriarcas não
demoraria a se manifestar. Em 3 de dezembro de 1976, Leminski se refere ao Plano Piloto para a Poesia Concreta, que
sintetizava as ideias centrais do movimento concretista, como “plano piloto que
virou pirata”. Mais tarde, em julho de 1977, recorda o alerta de Pignatari: “É
preciso acabar com o concretismo. E quem pode fazer isso são vocês”. E observa:
“(...) nós já estamos chegando lá (...) já consegui ver a fímbria de algo / que
já não é mais concretismo / embora pressuponha e o tenha deglutido (...)”. O
poeta demonstra não querer desapropriar as influências dos antecessores, mas
potencializá-las e deixá-las agir com outras sustentações, seguindo a
prescrição de Matsuó Bashô em Sendas de
Ôku: “Não siga os antigos. Procure o que eles procuraram”. Leminski buscava
outros valores, através de outras categorias de pensamento e apreciação e,
ainda que implícito, revela nas cartas a ânsia de se libertar dos critérios de
rigor, da radicalidade poética, das formas, paideumas e experimentos puros.
A
correspondência revela, ainda, o isolamento poético de Leminski na capital
provinciana. Diante do distanciamento geográfico de seus interlocutores, o
curitibano construía sua “ponte mágica e epistolar”, envelopes em que
circulavam revistas, jornais, ensaios e outras publicações, os chamados “pacote/reposta”.
A Curitiba do poeta era “simbolista, quieta, caipira, metrópole, tímida, terra
de bares e longas encucações, fria, com poentes longos como agonias, não
brasileira, de gente que não é pobre nem rica, média, mediana, medíocre”. A
exemplo da quase epopeia em que Leminski pensou em ser Homero, Rimbaud,
Ungaretti, Fernando Pessoa, Lorca, Éluard ou Ginsberg, e conclui com uma nota
melancólica e irônica: “Por fim / acabamos o pequeno poeta da província / que
sempre fomos / por trás de tantas máscaras / que o tempo tratou como a flores”.
“P.S.
– mostra esta carta a augusto e todo o pessoal senão...”.
[publicado originalmente em DC
Cultura, 29 de abril de 2006].
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