O traje último de Cubas
Adormeci
com uma ideia fixa e fui desperto por uma ânsia maior. A primeira sensação foi
de mal-estar nas vísceras e no âmago; depois, de dúvida. E para mutilar-me de
qualquer certeza, assisti Helena, a minha Capitu, vestir-se pela manhã. De
felpas negras a meias de algodão. Tentei imaginar as
ruelas por onde andavam aqueles saltos rasos. Lembrei que outro dia, ao vestir-se
em longas saias e sair sem mais, voltou sem nada, inclusive sem motivos
contrários. Imaginar. Ato de coragem e asco. Ela, diante do meu olhar fixo,
sorria um riso solto e quanto mais alto era a nota, maior minha convicção. Por
certo um adultério. Talvez me falte um propósito. Fosse um homem de incumbências,
de hora marcada e camisa engomada, teria valor. Então, saí naquela manhã com a
ideia fixa de convalescer-me da traição. Atravessei o mercado e cortei pela
avenida dos floristas. Aquela prateleira desengonçada, entre carros atropelando a
rotina, numa esquina que rima com encruzilhada. Parei em frente ao antiquário.
Helena disse que ali reviveria relíquias da década de 20. O relógio da capela
marcava cinco para às nove. O padre já subira e descera a escadaria da capela
tantas vezes e nem sinal de Helena. Acenei ao longe como quem busca uma prece. –
Bom dia, Bentinho, dirigiu-me a palavra já ao cruzar a rua. Mais quarenta e
três minutos em silêncio. Voltei à rua das flores e encostei-me na quitanda da
dama-da-noite. Maldito que plantara em mim essa angústia indizível. Esperei Helena
por mais de uma hora. Próximo das onze, sem mais, decidi abandonar meu
propósito. Comprei meia dúzia de rosas e transpirei na frustrada tentativa de
aquietar o temor. – Isso não passa de uma pequeneza, pensei. Irei para casa,
porei as flores no vaso e dormirei com a ideia fixa de acordar Brás Cubas.
Haverei de saber lidar com a morte.
[velhas letrinhas minhas].
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