sobre livros, memórias e Sirlene

Passava das oito quando bateu à porta. Ela costumava ser pontual no trabalho. Entra, tira o tênis e põe uma sapatilha de plástico com um azul pra lá de desbotado. Um pano semiúmido nas mãos, as unhas vermelhas por fazer. A passagem de Sirlene pela casa sempre altera a ordem das coisas e penso que os autores pressentem sua chegada.
 - (...) é a poeira que acumula nas capas, repete enquanto tira os livros da estante para então voltar a distribuí-los nas prateleiras.  

Suspeito que Sirlene acomode os livros segundo a lógica arguta da textura e da cor. Então, mistura os russos com os autores latinos, Orwell com Frankfurt, ciência política com literatura e teoria do jornalismo com livros de culinária mediterrânea.

Foi assim, enquanto ajeitava os livros acomodados por Sirlene, que reencontrei Graciliano. Para dar início à arrumação, escolho um vinho leve, Nina Simone na vitrola, janelas abertas, alças finas. Compor os livros na estante é quase um ritual sem data. Um reencontro com aquele autor perdido, é percorrer o passado entre linhas, rabiscos e rasuras. Logo na primeira página das memórias do velho Graça, o selo de uma livraria que já não existe e, mais adiante, um trecho com grifo meu dá o tom: “Comovo-me em excesso, por natureza e por ofício. Acho medonho alguém viver sem paixões”.

Li Graciliano em meio a uma mudança, no sentido literal. Joinville ficava para trás e eu, munida da certeza que tudo daria certo, tomava as rédeas da vida sem saber ao certo o que me esperava. Era julho de 2002 e, naqueles dias, atestava que mesmo a certeza carrega suas dúvidas.

Meu encontro com Graciliano foi em um apartamento pequeno, de um cômodo apenas, dois andares em uma esquina erma que mais parecia uma encruzilhada. Li suas memórias de un tirón, setecentas páginas em uma sequência de três noites mal dormidas entre uma e outra manhã de folga. Eis que aquele romance social e psicológico também fazia notar minhas próprias contradições.

Bueno, Sirlene voltará em uma semana. Até lá, os autores serão outros. Quiçá as dúvidas também.


>>Memórias do Cárcere é uma narrativa envolvente, de autoquestionamento, repleta de contradições e que, publicada postumamente em 1953, não tem um capítulo final. Graça não concluiu a obra.

>>Deste primeiro encontro com o velho Graça até minha viagem a Palmeira dos Índios, no agreste alagoano, passaram quinze anos. No registro ao lado, minha visita à casa do escritor. Graciliano foi prefeito da cidade de 1928 a 1930. 

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