O Estado, a mídia e a criminalização dos movimentos sociais

  Vanessa não pode sair de casa depois das dez da noite. Não pode fumar, consumir bebida alcoólica nem frequentar bares e baladas. Vanessa é aluna da última fase do curso de Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), está desempregada e, há 16 meses, desde outubro de 2016, permanece à disposição da justiça para prestar depoimento sempre que intimada. Vanessa não pode mudar de endereço sem autorização prévia da justiça, uma vez por mês tem que comparecer à delegacia para assinar uma lista e não pode se ausentar por mais de oito dias da comarca sem aviso prévio.

Vanessa não é portadora de nenhuma enfermidade ou anomalia. Ela é apenas mais uma vítima da justiça burguesa. As restrições à liberdade impostas à Vanessa se aplicam aos montes no Brasil e vêm a reboque das perseguições políticas comandadas pelo Estado policial que criminaliza aqueles que reivindicam e lutam por seus direitos. Acusada pela PM de infração do artigo 163 do Código Penal, Vanessa Canei foi presa em 10 de outubro de 2016, passou uma noite na cadeia e começou a pagar a pena em regime aberto já no dia seguinte à prisão, antes mesmo do julgamento. Naquela noite de segunda-feira, por volta das 22h30, em frente ao terminal de ônibus do Centro de Florianópolis, Vanessa Canei protestava junto a centenas de manifestantes contra a PEC 241, que congela os gastos públicos em saúde e educação por até 20 anos, e a medida provisória 746, outro retrocesso em relação aos direitos conquistados e assegurados aos jovens de escola pública. Vanessa e Larissa foram detidas por “desacato, resistência à prisão e dano ao patrimônio público” e Gabriel Rosa também foi preso em flagrante por “lesão corporal e resistência à prisão”.

O caso de Vanessa, Larissa e Gabriel é mais um dentre centenas que colocam aqueles que lutam por seus direitos no banco dos réus. Em junho de 2016, estudantes secundaristas foram torturados por policiais na desocupação da Secretaria da Fazenda (Sefaz) de Porto Alegre. O relatório do Comitê Estadual Contra a Tortura (CECT) aponta uma série de ações da Brigada Militar (BM) que caracterizam o crime de tortura. Segundo o documento, um estudante foi levantado pelo pescoço e outra agarrada pelos seios. Outro relato foi de um estudante forçado a abrir a boca para dentro jogarem spray de pimenta.

Outro caso símbolo da seletividade penal e da criminalização da pobreza e do racismo é a prisão de Rafael Braga. Até junho de 2013, Rafael Braga, jovem negro e pobre, trabalhava catando material para reciclagem nas ruas do Centro do Rio Janeiro. Em 20 de junho de 2013, quando no Rio de Janeiro acontecia a maior das manifestações contra o aumento das passagens de ônibus, Rafael Braga foi detido ao chegar em um casarão abandonado, onde por vezes dormia. Ele não participou da manifestação e carregava duas garrafas de plástico, uma de Pinho Sol e outra de desinfetante. Na delegacia, os policiais apresentaram as garrafas abertas e com panos. Ele foi acusado de portar material explosivo, que poderia funcionar como coquetel molotv. Em dezembro de 2013, Rafael Braga foi condenado a 5 anos e 10 meses de reclusão. Em outubro de 2014, houve uma progressão da pena para o regime semiaberto, quando poderia sair do presídio para trabalhar. Finalmente, em dezembro de 2015, Rafael Braga ganhou uma progressão ao regime aberto e passou a ser monitorado por uma tornozeleira eletrônica. Em janeiro de 2017, a caminho da padaria na favela onde morava, foi novamente preso em um flagrante forjado, de acordo com testemunhas, e acusado de associação e tráfico de drogas. Rafael Braga, jovem negro e pobre, foi condenado a 11 anos de prisão.

Esses processos de repressão tratam não apenas da detenção, mas muitas vezes reproduzem práticas comuns do regime militar, com tortura e tratamentos degradantes e desumanos. São métodos punitivos que, em uma sociedade sem reflexão sobre si, acabam sendo naturalizados por uma construção da verdade jurídica-policial e midiática. A chamada grande mídia é mais um sustentáculo dessa violência institucional. A cobertura jornalística da mídia burguesa em greves, paralisações e protestos mostra claramente como a imprensa constrói a opinião e apresenta uma percepção seletiva dos fatos. Em um primeiro momento da cobertura das Jornadas de Junho de 2013, quando a pauta dos protestos era o aumento das passagens de transporte público, o Jornal Nacional da Rede Globo dava ênfase à “degradação, ao tumulto e ao congestionamento” provocados pelas manifestações. As vidraças quebradas, a aparente desordem e a tropa de choque na defensiva foram as imagens criteriosamente selecionadas para a cobertura dessa primeira fase dos protestos, enquanto as fontes da notícia, escolhidas em maioria entre trabalhadores do comércio, ratificavam o pânico causado por conta dos manifestantes.   

Nesta terça-feira, 6, no Fórum de Florianópolis, o processo de Vanessa, Larissa e Gabriel teve mais um passo para seu desfecho. Às 16 horas, em audiência fechada, as testemunhas de defesa e acusação foram ouvidas. Uma das testemunhas do processo, o jornalista Rubens Lopes, cobria o ato de outubro de 2016 para a Rádio Campeche quando Vanessa Canei foi detida. Segundo as imagens apresentadas por Lopes e anexadas ao processo, em nenhum momento Vanessa resiste à prisão ou desacata os policiais. Segundo o jornalista, a manifestação seguia pacífica até o momento em que o choque começa a agredir os manifestantes com bombas, balas de borracha e spray de pimenta. De acordo com ele, que há anos cobre manifestações e atos na ilha de Santa Catarina, foi a cobertura em que notou maior repressão policial.

Vanessa ainda não teve voz na ação. A justiça e nem a imprensa comercial de Florianópolis trataram de ouvir seu relato. O desfecho da ação criminal movida pelo Estado contra Vanessa, Larissa e Gabriel deverá acontecer em 11 de abril, quando está marcada uma nova audiência. Até lá, completando 18 meses de regime aberto antes mesmo de ser julgada, Vanessa permanece vítima do Estado e da justiça burguesa. 





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